segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Medicina Narrativa I

O texto a seguir é uma Narrativa Médica, com uma linguagem muito diferente da habitual encontrada nos prontuários. Com essa ferramenta é possível treinar a escuta sensível ao paciente, possibilitando desvendar conflitos essenciais para o diagnóstico familiar. #os nomes são fictícios.

Medicina também é arte.



Odete, 43 anos. A idade, levemente, revela-se nas expressões e no tecido que recobre seu corpo, não sendo este composto por fibras sintéticas, mas por células vivas que, como um solo acidentado, parece que luta para se manter íntegro. Manhã não muito agitada no posto de saúde Ney Braga e Odete estava sentada na cadeira da recepção bem junto à porta que leva ao corredor para as salas de consulta. Suas mãos insistiam em permanecer fortemente entrelaçadas às alças da bolsa que carregava consigo, esta quase que como uma parte integrante de seu corpo de tão próxima e comprimida à lateral de seu tórax. Os poucos bancos ao redor estavam vazios, aproveitei então a oportunidade e lhe cumprimentei com um sorriso sentando-me logo em seguida. Ela, receptiva, respondia-me rapidamente, demonstrando ou algum distúrbio do metabolismo ou, talvez, algum sinal de desconforto diante do contato com uma desconhecida em um contexto onde os sons que se ouve são os sons da dor (seja o silêncio ricamente expressivo, seja o gemido incontido), a voz que soa exaltada chamando nomes em uma lista e o ranger das portas que se abrem e fecham, abrem e fecham...

O primeiro contato foi acompanhado de um olhar quase que de suspeita sobre mim, como quem tenta decifrar o motivo de tal aproximação inesperada. Minha reação, diria que foi a de não reagir a esse seu estranhamento, mas tentar perceber qual era o limite para a aproximação física, qual a liberdade que Odete estava me permitindo. Em alguns minutos já estávamos em uma conversa descontraída que foi tomando rumos mais delicados quando percebi a dor da alma se manifestando pelas palavras e o corpo encolhido. Inicialmente conversamos como quem acaba de conhecer um futuro amigo em potencial, quero dizer, sem pretensões de preencher uma lista, mas simplesmente de fincar algum vínculo que possibilitasse a existência da mínima confiança para que ela se permitisse expor algo além da superficialidade das relações casuais. Até esse momento havia nos separando a distância de uma cadeira vazia. No entanto, quando a percebi receptiva e já sem os olhos a me espreitar com suspeita, sentei-me na cadeira imediatamente ao seu lado, e assim a conversa tomou um rumo mais pessoal.

Odete iniciou dizendo que estava ali para uma consulta de rotina, mas que era “freqüentadora assídua” da Unidade Básica em função dos cuidados requeridos para sua filha, Camila, de 17 anos. Essa primeira descrição não permite a percepção do que significa essa filha na vida de Odete, mas até o fim de nossa conversa, percebi que talvez não fossem mãe e filha dois seres individualizados com suas próprias dores e percepções, mas, ao contrário, era uma mulher que, além de carregar sua própria existência sobre as ancas, tomou sobre si a vida de Camila, não só como é de mãe o fazer, mas como se fosse sua própria vida, sendo diminuída em sua individualidade para sofrer a dor da jovem e se restringir quase que exatamente às mesmas limitações a que sua filha se encontra.

Camila sofre de uma enfermidade que os médicos ainda têm discutido para uma conclusão mais sólida. Inicialmente o diagnóstico foi de paralisia cerebral, no entanto, Odete contou-me que seu casamento é cosanguíneo, pois seu marido é também seu primo. Isso levou os médicos a suspeitarem de doenças genéticas que aumentam a incidência com a cosanguinidade. Aquilo que falei sobre essa mulher ter tomado sobre si a existência da filha talvez tenha ocorrido por ter ouvido de algum detentor da “autoridade do jaleco branco” que investigariam se essas limitações todas da jovem são decorrentes da união entre os primos.

A única cuidadora de Camila, efetivamente, é sua mãe. A jovem é plenamente necessitada de cuidados, uma vez que se desenvolveu esqueleticamente muito pouco e anormalmente, portanto não anda; os sons que emite não culminam em fala, mas somente em gemidos e resmungos. Além disso, alimenta-se por sonda, não se utiliza dos órgãos da visão para nada além de perceber vultos, claro e escuro, mas ainda assim, Odete afirma peremptoriamente que a jovem se comunica de alguma forma que não soube explicar como é. Desde o nascimento da filha, a vida de Odete é ser cuidadora. Ao falar sobre como a família se relaciona com sua filha, ela mudou o tom da voz e não mais me fitou nos olhos. Sua cabeça se inclinava pra baixo e fazia movimentos leves para as laterais, como quem não se permite aceitar algum absurdo. Contou-me indignada que parentes agem como se Camila não existisse pelo fato de ela não se relacionar como eles talvez esperem de uma jovem. Diferente da fala apressada do início da conversa, as palavras saíam agora com uma carga diferente que lhes tornavam mais vagarosas. Fez questão de exemplificar o que queria dizer: em uma ocasião de reunião de família, alguns decidiram ir ao Paraguai fazer algumas compras. Ao retornarem a casa onde estavam todos, presentearam praticamente toda a família, mas, nas palavras de Odete “comparam presentes e lembrancinhas pra todo mundo; e acredita que não deram nada para Camila? Eles nunca deram. Pra você ver, 5 de Maio é aniversário dela, nunca deram um presentinho; você acha que alguém lembra?”.

Na casa onde residem, também moram seus pais, José e Cleuza, sua irmã com seus três filhos (7 e 2 anos e um recém-nascido), e vez ou outra estão presentes seu marido, pois trabalha no estado de São Paulo, e seu filho de 20 anos, a quem se referiu com o pesar de uma mãe cansada, mas insistente em aconselhar o filho que quer conhecer o mundo sem colher os frutos.

“Nunca fui à praia...” disse Odete no fim da conversa, tendo os olhos como que banhados pelas águas do mar que corriam da abertura da glândula lacrimal no canto superior lateral de seus olhos, percorrendo como ondas as superfícies externas da córnea e conjuntiva. Águas essas que foram espalhadas pelo movimento incansável das pálpebras superiores, até serem completamente drenadas pelo ducto nasolacrimal, permitindo que essas águas salgadas, a partir de onde eram visíveis tanto pra mim quanto pra ela, fossem direcionadas à cavidade nasal para transitarem por lugares cada vez menos acessíveis. Resistiu em lamentar a impossibilidade de ir a uma excursão para a praia no fim do ano com um grupo da terceira idade do qual faz parte, e quando questionada sobre o porquê não aproveitava a oportunidade para conhecer o mar, terminou com uma pergunta a qual respondi com um silêncio e uma expressão provavelmente insuficiente para acolhê-la, “MAS VOCÊ ACHA QUE ALGUÉM QUER FICAR CUIDANDO DELA PRA EU IR VIAJAR?”... e com o silêncio que se seguiu, silenciaram-se também as águas salgadas, tanto as do mar, quanto as de seus olhos.